Capítulo 1

Capítulo 1 
“Fases”
Ás vezes quando eu acordo, sinto uma grande tristeza ao abrir os olhos. Eu não sei ao certo explicar o porquê disso, mais enfim. Eu não sou do tipo que irá procurar um médico e me entupir de remédios para alcançar alguma resposta, na verdade não sei se existe alguma resposta para essas coisas que eu sinto, vejo ou ouço. Apenas sei que isso consegue ser mais forte do que eu possa agüentar, então acabo por perecer e caio nessa escuridão novamente.
                Não que eu queira parecer inocente. Inocente realmente eu não sou. Mais também não consigo entender porque essas coisas acontecem comigo.  Pode parecer estranho e muito incerto o que estou dizendo, mais eu creio, que logo você irá entender.
                Para começar, meu nome é Kayo e hoje eu já estou com dezoito anos de idade. Na realidade isso já vem acontecendo comigo já faz um bom tempo, mais eu nunca dei conta que fosse algo assim tão sério. Mais há cerca de dois anos, ou seja, quando eu tinha dezesseis anos uma coisa bem trágica aconteceu comigo.
            Era um dia normal como todos os outros, e alguns alunos da Escola Júlio César Menezes haviam ganhado uma premiação devido ao ganho de um inter-classe. Meu grupo foi o grande vitorioso, e iríamos passar um final de semana em um acampamento fora da cidade. Estávamos todos felizes com aquilo, mesmo desejando que esses dois dias fossem durante a semana. Arrumávamos qualquer desculpa para não irmos à escola. Mas enfim, era o único dia que tínhamos disponíveis.
                Havia uma professora no ônibus e mais o Senhor Francisco, um velhote chato e zelador da escola, que dirigia o ônibus. A professora era a Senhora Cruz uma senhora já de idade mais que fazia jus ao que diziam que “gente velha é ranzinza”, que nessa altura estava quase enlouquecendo.

- Por Deus, vocês não conseguem se calar? – dizia ela constantemente – Eu estou ficando com uma enorme dor de cabeça. Maldita hora que aceitei vir por conta de uns trocados a mais no final do mês.
- Simples dona Cruz, não viesse! – disse Júnior.
- Se eu não viesse, Júnior, vocês ficariam a mínguas naquele lugar. O Senhor Francisco não poderá ficar com vocês lá, e então vocês ficariam com quem?
- Temos garotas no ônibus dona Cruz, não precisamos de mais nada! – disse Júnior rindo.
- Júnior você está em uma idade tão nojenta! – disse a professora.
- Oras, me desculpe se a senhora não teve infância...

                Enfim, não é preciso dizer que uma longa discussão começou a partir do que Júnior tinha falado.
                Eu como sempre, estava na minha, ouvindo minha musica no celular, tranquilamente quando eu vi dois carros da policia e mais uma ambulância passando pelo meu lado da janela. Corriam feitos loucos como se logo a frente tivesse tido algum tipo de acidente. Não vou negar que fiquei com um pouco de medo, mas nada que fosse tirar meu sono.
                Mas o que de fato eu estranhei foi o fato de que ninguém de dentro do ônibus pareceu ter dado importância aquilo e muito menos o Senhor Francisco que pareceu não diminuir a velocidade do ônibus. Foi então que perguntei a Andréia, uma menina loira e muito bonita que sentava do meu lado se ela tinha visto os carros.

- Você não viu? – perguntei a ela.
- Teria que ter visto alguma coisa? – disse ela rindo – Tire isso dos ouvidos Kayo, Júnior e a Cruz estão quase se batendo.
                Eu tirei um fone do ouvido, e continuei com o outro, olhei rapidamente para a aglomeração que estava na frente do ônibus, mais logo minha cabeça girou novamente para o lado de fora e eu pude ver mais duas ambulâncias passando em alta velocidade.

- Não viu mesmo Andréia? – perguntei de novo a ela sem tirar os olhos da janela, tentava acompanhar com a cabeça os carros que eu ainda via ao longe, lá na frente, com muita dificuldade – Passou mais duas agora!
- Kayo, você está dormindo, nem barulho de sirene eu estou ouvindo. – disse ela, olhando ainda pro aglomerado, parecia que a Senhora Cruz queria bater em Júnior.
- É eu devo estar ficando louco. – sussurrei.

                A última coisa que eu me lembro é de ter sentindo um forte balanço no ônibus, como se tivéssemos passado em um buraco ou por cima de alguma pedra. Lembro-me de olhar para frente e ver Júnior se jogando pra cima da Senhora Cruz. De uma forte dor em minha cabeça e depois um gosto de sangue que parecia persistir em minha boca.
                Quando eu finalmente abri os olhos, ainda sem entender ao certo o que havia acontecido, pude ver meu pai de costas, encostado no batente da porta, conversando com dois outros homens. Logo um deles se mexeu para ver alguma coisa no corredor e eu pude ver que eram da policia. Pude ouvir perfeitamente o que falavam.
- Eu sei doutor, nós não vamos apreçar as coisas, mais temos cinqüenta corpos no IML da cidade e precisamos saber de fato o que ocasionou esse acidente. Obtivemos informações que o ônibus estava em alta velocidade, mais isso talvez pode não ser verdade, o único que pode nos explicar é seu filho, já que ele é o único sobrevivente.
- Eu sei mais leve em consideração, chegar e ficar plantados aqui esperando ele acordar para saber o que houve, enche-lo de perguntas não é algo apropriado. – disse meu pai em tom bem baixo. Eu pude perceber que ele estava super preocupado.
- Nós sabemos disso, doutor...
- Sou médico e não estou fazendo isso porque ele é meu filho. Estou fazendo isso porque isso é o padrão. Então a menos que eu ache que ele está disposto a falar, ele não vai falar nada. Agora se puderem dar licença, gostaria de pedir que se retirem.
- Nós sabemos que está nervoso, doutor, mas reconsidere...
- Não irei reconsiderar, agora, por favor, senhores. Independentemente de ele ser meu filho ou não, ele é um paciente aqui. Respeitem pelo menos isso.

                Antes de eu fechar meus olhos novamente, lembro de ver meu pai saindo da porta e acompanhando os dois policiais até sabe-se lá aonde.
                Dias depois eu voltei para casa. Eu ainda tomava remédios para conseguir dormir e não conseguia falar sobre o que tinha acontecido. Para ser mais claro, eu estava mudo. Ouvi minha mãe falar no meio da noite para meu pai que ela iria contratar uma psicóloga para vir até em casa para tentar conversar comigo.
                Assim foi durante muito tempo, até mesmo com as visitas incansáveis da psicóloga nenhum som saia da minha boca. Eu comia apenas para estar vivo. Tomava água apenas para me manter vivo. E tomava remédios para conseguir dormir. Eu parecia mais um morto vivo do que qualquer outra coisa. Alias, acho que um morto-vivo estaria mais vivo que eu, sei que isso é meio redundante, mais eu me sentia assim.
                Algum tempo depois eu soltei minha primeira palavra. Na verdade um grito. Já era alguma coisa, sendo que por quase três meses não saia nem um “A” de minha boca. Aquilo foi visto pelos meus pais como algo milagroso. Para mim, algo completamente tenebroso devido a circunstâncias ao qual fora proferido.
                Um pesadelo ao qual eu me via novamente naquele ônibus, naquele dia fatídico, ao qual acontecera o acidente. Eu pude ver com clareza todos dentro do ônibus. Júnior discutindo com a professora e até mesmo Andréia, que estava do meu lado. Ao olhar para fora pude ver as duas viaturas da policia passar pelo ônibus, logo depois a ambulância. Olhei novamente para frente e consegui ver novamente Júnior, e a professora, envolto dos outros alunos. Andréia ainda estava do meu lado. Foi quando novamente olhei pela janela e vi as outras duas ambulâncias, sendo que uma seguiu a frente e de atrás pareceu estar acompanhando o ônibus. Pude ver em um determinado momento no banco do passageiro que ali não havia ninguém e então algo surgiu dali, direto do banco. Uma criatura de pele quase translúcida, aonde se podia ver os ossos. Os olhos estavam vedados com um pano e sua boca era imensamente grande em comparação com sua cabeça. Ela soltou um grunhido, e pareceu partir para cima de mim.
                Minha mãe e meu pai vieram correndo ver o que tinha acontecido. Eu estava suado e sem ar, os olhos ainda em orbita de tão abruptamente que eu havia acordado.

- Foi apenas um pesadelo meu filho, acalma-se! – dizia minha mãe me abraçando.
               
                Meu pai, sendo médico e por já ter visto várias coisas e atendidos vários casos tão “tontos” quanto esse, parecia não saber o que fazer e nem para aonde ir, então ficou ali, sentado na minha cama, esperando ordens da minha mãe.
                Não preciso dizer que eu não consegui dormir aquela noite, fiquei deitado no colo da minha mãe na sala de casa. Ela logo se foi num sono longo e profundo. Dei-me conta então do trabalho que estava dando para os meus pais desde o acidente e decidi que eu teria que voltar a ser um garoto normal. Que seja lá o que tinha acontecido, já era passado.
                Não vou negar que eu tinha medo do que isso poderia resultar. Como, por exemplo, ir à escola, ou até mesmo ir falar com a polícia.  Mais talvez isso nem fosse um problema tão forte. O que eu mais temia era falar ou comentar sobre as outras coisas. Tais como a suposta visão das viaturas da policia e das ambulâncias. Oras, eu não tinha mesmo o que dizer sobre o que acontecia ao meu redor, eu estava era preocupado com isso, e nada mais. Mas lembro de ter me perguntado: E agora, o que faço? Fico recluso até tomar uma decisão do que fazer, ou volto a ser, ou tentar a ser um garoto normal?
                Decidir pelo mais provável não fazia muito o meu estilo, então decidi arriscar.
                No dia seguinte levantei do sofá e acordei minha mãe. Eu disse a ela que eu queria ir à escola e se tinha como ela me ajuda a me arrumar. Eu pude ver lágrimas saindo de seus olhos quando me ouviu falar.

- Oh! Meu anjinho é bom tê-lo de volta. – disse ela com um forte abraço.

                Subi e fui até o banheiro, lavei o rosto e me olhei no espelho e vi o que eu havia me tornado. Eu estava com o cabelo grande todo bagunçado, estava mais branco que uma cebola. Até meus lábios estavam brancos. Anemia com certeza não era. Meu pai era médico e não tinha comentado nada. A única coisa “normal” em mim era a barba ao qual mesmo dopado de remédio minha mãe fazia de tudo para eu fazê-la. E mesmo assim eu estava com o rosto com alguns pêlos. Fiz a barba novamente. Tomei um bom banho. Fui ao meu quarto e me agasalhei. Fazia muito frio naquele dia, já era inverno e essa maldita cidade quando esfria, parece a Antártida. Tudo bem, eu nunca fui pra lá mais acho que pode ser bem parecido. Desci para a cozinha aonde tinha um bom café e tomei. Comi algumas bolachas. Dava para ver no rosto da minha mãe que ela estava feliz, e isso me deixava feliz também. Pelo menos era o que eu sentia naquela hora.

- Seu pai está tomando um banho, ele vai te levar a escola, eu só não vou porque tenho que ir pra loja hoje mais cedo. Mais eu estou tão feliz por você estar assim. Ter falado e decidido voltar a ser quem era. Alias, a ser o que você é. Foi apenas uma fase ruim, meu filho, tudo no final sempre dá certo. – seus olhinhos lacrimejavam.
- Pare com isso mãe, você fala como se eu tivesse acabado de sair de um câncer. - eu disse isso? – Tudo bem, eu exagerei. Só espero que as coisas estejam da mesma maneira como eram.
               
                Eu queria realmente que isso fosse verdade.
- Não podemos esquecer mãe, que de dezessete que tinha naquele ônibus, apenas eu sobrevivi. – isso era difícil de dizer mais eu sempre fui assim, meio insensível com questões alheias, talvez esse tenha sido o choque dos meus pais, o fato de eu ter dado tanta importância – Não sou melhor do que o pessoal que tinha lá, mas enfim...
- Eu compreendo meu filho. Mas levante a cabeça. Você não teve culpa de nada com o que houve naquele dia, foi uma perda lamentável, você perdeu seus amigos, as famílias perderam entes queridos, mais já passou muito tempo desde que isso aconteceu. Não tanto tempo, mais eu espero que as coisas estejam mais amenizadas.

                Minha mãe era assim, sempre achava que as coisas passavam, que viam e iam e não mais voltavam. Adorava isso nela, de certa forma me fazia com que eu pudesse me sentir bem e me dava forças para prosseguir.